1943-2012
Manuel António Pina vivia cercado de
gatos. Procurava os vadios, os
outros ocupavam a sua casa. A sua escrita, desde logo a poesia, sempre as
crónicas no Jornal de Notícias, eram uma cama de gatos: um jogo perpétuo onde
se fazia sempre diferentes figuras com o novelo da vida.
As palavras eram nervosas e ágeis, reflectidas e
cultas, certeiras e humoradas. E humildes, como ele. Eram o ronrom e o
arranhar. Fialho de Almeida, em "Os Gatos", escreveu: "Deus fez
o homem à sua imagem e semelhança, e fez o crítico à semelhança do gato".
Lembro Fialho porque ele foi a inspiração primeira do Pulo do Gato nesta última
página do Negócios.
Ou segunda, porque os "Os Dias de
Amanhã", de Victor Cunha Rego, sempre foram uma referência. Manuel António
Pina também teve o felino instinto destas últimas páginas e, vezes sem conta,
bebi as suas palavras como o olhar atento de um gato. As suas crónicas
iluminadas na última página do Jornal de Notícias eram como um ponto final. Um
olhar ora fixo, ora irrequieto. Era um nómada no jornalismo de hoje, preso aos
gestos de amor, às armadilhas da ironia, ao mistério das emoções. Ao longo dos
anos, Manuel António Pina foi um farol da crónica pequena (mas nunca pequena
crónica), que se moveu como um alvo sempre em movimento, género que outros,
como João Paulo Guerra ou Ferreira Fernandes, também aperfeiçoaram como se
fosse um rio que não recusa nenhum mar. As páginas de jornais, o mundo das
crónicas, ficam agora com um défice colossal. E uma dívida ao passado que nunca
conseguirão pagar.
Manuel António Pina dizia que tinha medo
de ter medo. Mas não temia, como os gatos.
Tinha uma curiosidade infinita, como todos
eles. Tinha a paciência de um gato antes de escrever a definitiva palavra. As
suas crónicas era elegantes e mordazes. Essa capacidade cada vez mais fugaz
para descrever um Portugal que tem de ser conhecido aos pedaços e, talvez, ser
consertado aos pedaços. A realidade conseguia doer através dos seus olhos
felinos, sentado, enfrentando o declínio de um país que descreveu na sua
poesia, impressão digital desse olhar único que emprestava às palavras. O
Prémio Camões mereceu-o por tudo o que deixou a Portugal. A perspectiva viva,
humorada e culta de Manuel António Pina deixou-nos. Fica a memória. Fica a
poesia.
Fica a faltar a luz das crónicas na última
página, que escreveu como mais ninguém.
O título do seu primeiro livro de poesia
parecia pressentir tudo isso: "Ainda não é o fim nem o princípio do Mundo,
calma é apenas um pouco tarde". Adeus. Os gatos vão sentir-se sozinhos.
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